No início de 2000, o índice de sobrevida de pacientes com leucemia
promielocítica aguda (LPA) no Brasil era de 50% contra os mais de 80%
registrados nos Estados Unidos e em países europeus.
A maior incidência da doença em países latino-americanos não
justificava a discrepância nas estatísticas: a LPA responde bem ao ácido
all-trans retinoico (ATRA), medicação que é distribuída pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). A explicação para a defasagem nos resultados
estava no diagnóstico tardio e no consequente atraso no início do
tratamento de uma doença que induz a um grave quadro hemorrágico,
elevando o número de óbitos.
Associando pesquisa básica e clínica, pesquisadores do Centro de
Terapia Celular (CTC), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID)
mantido pela FAPESP e sediado na Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, propuseram um novo modelo de
diagnóstico, adotado por um consórcio de oito hospitais públicos em
cinco estados.
“Em nove anos, a mortalidade caiu pela metade e a sobrevida dos
pacientes chegou a 70%”, comemora o pesquisador Eduardo Magalhães Rego. O
resultado do trabalho foi capa da revista Blood,
em 14 de março de 2013. O protocolo tornou-se padrão em outros países
da América Latina: agora, o consórcio também reúne hospitais do Chile,
do Uruguai e do México e, nos próximos meses, incluirá o Paraguai e o
Peru.
O novo diagnóstico da LPA traduz uma das missões primordiais do Centro de Terapia Celular e do Programa CEPID, criado pela FAPESP em 2000: desenvolver pesquisa de excelência, comprometida com a aplicação de resultados.
A partir de hoje, a Agência FAPESP dá início à publicação de
uma série de reportagens especiais sobre os CEPIDs apoiados pela
Fundação entre 2001 e 2013 e lança um site especialmente para o
programa, que pode ser acessado em: cepid.fapesp.br.
“O CTC criou um ambiente fértil para o desenvolvimento de
metodologias relacionadas à pesquisa com câncer, células-tronco,
biotecnologia e biologia molecular”, avalia Marco Antonio Zago,
coordenador do Centro e pró-reitor de Pesquisa da USP. “Fazemos pesquisa
básica e temos clínica de tratamento de pacientes, laboratórios no
Hemocentro e no Hospital das Clínicas, além de uma unidade de
transplante de medula óssea.”
A formulação do novo teste diagnóstico da LPA fez o percurso da
bancada à clínica. “A LPA resulta da quebra de dois cromossomos que
trocam pedaços entre si, formando um gene de fusão. O desafio era
entender como esse gene causa a leucemia”, explica Magalhães Rego.
Utilizando modelos transgênicos, os pesquisadores reproduziram a
doença em camundongos e constataram que algumas proteínas, que deveriam
atuar como supressoras, não funcionavam. Uma delas, a PML, “aprisionada”
em estrutura bem definida em indivíduos sadios, entre doentes
apresenta-se dispersa, sem função de regulação do organismo e em
interação com outro grupo de proteínas.
A dispersão da PML foi a chave para o teste diagnóstico, realizado
por meio de exame de medula óssea em reação a anticorpos “doados por um
pesquisador italiano”, como Magalhães Rego diz. “Trata-se de um exame
laboratorial de imunofluorescência, disponível em hospitais de porte
médio, e que fica pronto em seis horas”, descreve.
O próximo passo será testar o efeito do transplante de células-tronco
hematopoiéticas (TCTH), extraídas da medula óssea, no tratamento de
infecções oportunistas em portadores de leucemias mieloides agudas.
Diferenciação celular
O TCTH é uma terapia desenvolvida pelo CTC desde o início do ano
2000. “Na época, ainda não se falava em células-tronco. Só usávamos
transplante de medula”, lembra Zago. “Tínhamos três fontes, células da
medula, do sangue e da placenta, com respostas diferentes no tratamento
celular.”
A diferenciação celular e a resposta clínica passaram a ser foco de
estudos da equipe. Em 2004, quando uma pesquisa sueca sugeriu que as
células-tronco reduziam a resposta imunológica dos organismos porque
alteravam o linfócito T, a equipe resolver avaliar o seu uso no
tratamento do diabetes, doença autoimune em que o sistema imunológico
ataca as células produtoras de insulina do pâncreas.
A hipótese era a de que, se o ataque fosse interrompido e as células
restantes preservadas, seria possível, por meio de TCTH, recuperar o
pâncreas, reduzir a dependência de insulina e evitar complicações
típicas da doença, como a retinopatia, nefropatias e neuropatias.
Do primeiro protocolo experimental participaram 25 pacientes
diagnosticados com diabetes tipo 1. Eles tiveram as células-tronco
hematopoiéticas de sua medula óssea coletadas e congeladas antes de se
submeterem a uma quimioterapia para zerar o sistema imunológico e
interromper a agressão ao pâncreas.
As células-tronco congeladas foram, em seguida, transfundidas,
produzindo uma nova medula e novas células sanguíneas. Dos 25 pacientes,
três estão livres de insulina e 22 voltaram a utilizar a insulina
depois de um determinado período, ainda que em dose inferior à utilizada
antes do tratamento.
Um novo protocolo de TCTH foi iniciado em 2009, com outros quatro
pacientes com diabetes tipo 1 diagnosticados há menos de cinco meses. A
pesquisa tem parceria da Northwestern University, de Chicago, e da
Universidade Paris Diderot. “Estamos entusiasmados com os resultados”,
adianta a pesquisadora Maria Carolina de Oliveira Rodrigues.
Antes disso, em 2008, em outro protocolo experimental, os
pesquisadores tentaram modular o sistema imunológico de pacientes
diabéticos por meio de aplicações de células mesenquimais, extraídas da
medula de um parente.
“A hipótese era a de que células mesenquimais seriam capazes de
migrar e de se diferenciar em células do pâncreas produtoras de
insulina”, explicou a pesquisadora Oliveira Rodrigues em uma reportagem da Agência FAPESP. A resposta, no caso, não foi animadora e uma nova pesquisa poderá ser realizada.
Um protocolo para o SUS
Protocolo semelhante ao do diabetes tipo 1 tem se mostrado promissor
também no tratamento da esclerose múltipla, doença que agride o sistema
nervoso central e compromete progressivamente a capacidade neurológica (leia mais em agencia.fapesp.br/10090).
Desde 2002, 100 pacientes foram submetidos à quimioterapia e injeção
endovenosa de células-tronco hematopoiéticas para interromper o avanço
da doença, relata Oliveira Rodrigues.
Ao longo dos últimos 11 anos – período que correspondeu ao
financiamento da FAPESP ao CTC –, a administração do quimioterápico foi
sendo calibrada à resposta dos pacientes. “Uma terapia muito tóxica foi
substituída por outra, mais adequada. Também aprendemos que o
transplante não funciona quando a doença está em estágio muito
avançado.” O protocolo atual está sendo avaliado junto com a
Universidade de Northwestern, e os resultados comparados com os das
melhores drogas.
O CTC tem conseguido ótimos resultados também no tratamento da
esclerose sistêmica, que afeta progressivamente as células do tecido
conjuntivo, causando alterações vasculares e fibrose da pele. O
tratamento convencional, com ciclosfosfamida, evita a progressão da
doença, mas, em pelo menos um terço dos casos, o TCTH antecedido por
quimioterapia é o procedimento recomendado.
Em 48 pacientes, o transplante interrompeu a agressão, revertendo o
quadro de degeneração cutânea associado e estabilizando o paciente.
“Esse protocolo está em vias de ser adotado pelo SUS”, revela Oliveira
Rodrigues.
Os riscos têm de ser ponderados. Em fevereiro de 2013, em parceria
com pesquisadores da Northwestern, a equipe do CTC publicou na Lancet
um artigo recomendando uma avaliação cardíaca minuciosa para melhor
avaliar a oportunidade do transplante, em decorrência, entre outros
fatores, do coquetel quimioterápico (leia mais em agencia.fapesp.br/16803). “Iniciaremos um segundo estudo para comparar três esquemas de quimioterapia e avaliar o melhor.”
A excelência e os bons resultados alcançados pela pesquisa devem ser
creditados à equipe qualificada, aos parceiros internacionais de peso,
como as universidades de Montreal, Guelph, Munchen, King's College,
Leiden, entre outras, e, principalmente, ao financiamento de grande
porte e de longo prazo.
“A equipe tem competitividade. Nesse período, além do apoio da
FAPESP, contamos também com recursos de outras agências de fomento como a
Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Conselho Nacional de
Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq). Isso sem falar do orçamento da
própria universidade. O resultado é que os recursos repassados pela
FAPESP foram multiplicados por dois”, afirma Zago.
A qualidade dos estudos credenciou o CTC para integrar, desde 2008, a
rede de pesquisas formada pelos Institutos Nacionais de Ciência e
Tecnologia (INCTs), por meio da qual desenvolve 30 projetos nas áreas de
células-tronco e terapia celular, em parceria com universidades
paulistas, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Centro
Nacional de Primatas, no Pará. Os projetos são financiados, meio a meio,
pelo CNPq e pela FAPESP (leia mais em http://lgmb.fmrp.usp.br/inctc).
Em 2013, o CTC teve aprovada uma nova proposta de trabalho, por meio
do segundo edital do Programa CEPID. Até 2014, o Centro implementará um
ambicioso programa multidisciplinar, com foco no estudo das
características moleculares, celulares e biológicas de células normais e
patológicas e na avaliação crítica de seu potencial terapêutico. Os
objetivos são gerar linhagens brasileiras a serem utilizadas em estudos
pré-clínicos e investigar os mecanismos envolvidos no estado de
pluripotência, assim como em doenças como disceratose congênita, anemia
da Faconi, hemofilia A e doença de Parkinson.
Todos os estudos visam à produção em grande escala de células-tronco,
de forma a permitir sua utilização clínica potencial. Nesse período,
também seguirão em curso um projeto de transferência de tecnologia com
foco na melhoria da saúde pública e um programa de educação em Ciência.
Para saber mais sobre o CTC leia também: Tecnologia para o mercado e O círculo virtuoso da ciência.
Fonte: Agência FAPESP
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