A descrição da doença, feita por médicos que já acompanharam casos de
hantavirose, é impressionante. Em questão de horas, o raio X do pulmão
de um paciente pode passar de normal para o de alguém que está morrendo.
O que começa muitas vezes como uma simples febre vira uma pneumonia
gravíssima em curto tempo, com pouca chance de reversão.
Em 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou no país 47 casos
confirmados dessa doença emergente, cujo nome oficial é síndrome
pulmonar e cardiovascular por hantavírus (SPCVH) – adquirida
quando se inalam os aerossóis da urina, da saliva e das fezes de ratos
silvestres infectados. Desde que foi descoberta nas Américas, em 1993,
até hoje foram registrados cerca de 1,6 mil casos no Brasil. O número é
baixíssimo, se comparado com outras moléstias, mas o que preocupa é a
sua letalidade: quase metade dos infectados morreu.
Há poucos centros no país com estrutura para estudar um microrganismo
tão virulento, entre eles o Centro de Pesquisa em Virologia da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo
(USP), que construiu um laboratório de nível 3 de biossegurança (o
segundo mais seguro da escala) com auxílio da FAPESP.
Em 2006, com apoio da USP e da FAPESP, os pesquisadores depositaram
um pedido de patente, publicada dois anos depois, de uma proteína
antigênica de hantavírus – que provoca a formação de anticorpos
específicos quando introduzida no organismo – produzida no centro.
Atualmente, a proteína é usada para fazer o diagnóstico da doença. Mas a
ideia é criar uma vacina a partir dela.
“Como ela induz a produção de anticorpos, poderia ser avaliado o seu
potencial como vacina”, disse o pesquisador Luiz Tadeu Moraes
Figueiredo, coordenador do Projeto Temático "Estudos
sobre vírus emergentes incluindo arbovírus, robovírus, vírus
respiratórios e de transmissão congênita, no Centro de Pesquisa em
Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de
São Paulo", concluído em 2012.
“Temos de saber antes se essa proteína que produzimos protege animais
contra a infecção. Se ela proteger, vamos em frente até chegar ao
homem. É um processo demorado, mas nós pretendemos começar”, afirmou.
A proteína em questão é o segundo método de diagnóstico de
hantavirose desenvolvido pelo centro. O primeiro usa uma técnica
relativamente comum, a reação em cadeia de polimerase, em tempo real, na
qual se detecta o genoma do vírus em uma amostra do sangue do paciente
ou de um fragmento de tecido de uma vítima.
A fim de produzir a proteína do hantavírus, os pesquisadores
selecionaram um gene do vírus Araraquara – principal responsável pelas
hantaviroses da região de Cerrado brasileiro, atingindo uma área que vai
do nordeste do Estado de São Paulo até o sul do Maranhão – e o
transferiram para uma bactéria.
A bactéria passou a produzir a proteína, que depois foi purificada
pelos cientistas para ser utilizada nos testes. Os anticorpos no sangue
do paciente são detectados por um teste imunoenzimático denominado
Elisa.
“Os dois métodos de diagnóstico são feitos a partir de exames de
sangue do paciente. Em um, procuramos pelo genoma do vírus; no outro,
buscamos por anticorpos contra o antígeno do vírus que produzimos em
laboratório”, disse Figueiredo.
Outros Estados e países
Depois de patenteada, a proteína recombinante do hantavírus
Araraquara foi enviada a outros centros de pesquisa dentro e fora do
Brasil para auxiliar nos diagnósticos e nos estudos sobre esse tipo de
vírus.
Já foram feitos trabalhos na Argentina e na Colômbia a partir dessa
proteína, conta Figueiredo. “Pela primeira vez na Colômbia estão fazendo
diagnóstico de hantavirose e é com a nossa proteína; eles suspeitavam
que a doença existia, mas não faziam o diagnóstico. Agora vão começar a
fazer.”
No Brasil também são estudados casos pioneiros em Estados como
Amazonas, Mato Grosso e Ceará. Agora, os cientistas querem saber qual é o
tipo de hantavírus que circula por esses Estados, uma vez que a doença
pode se manifestar de maneiras diferentes e ser transmitida por roedores
diversos. No Ceará, por exemplo, os casos não parecem ser tão graves
como os registrados em São Paulo ou Minas Gerais, de acordo com o
pesquisador.
Por enquanto, dos hantavírus conhecidos, o mais virulento, segundo
Figueiredo, é mesmo o Araraquara, cujo animal reservatório é o roedor Necromys lasiurus ,
popularmente chamado de rato-do-rabo-peludo, encontrado nas regiões do
Cerrado. “Vimos que esse roedor adora a semente do capim braquiária;
onde tem muito capim braquiária ele se concentra e se reproduz em grande
quantidade.”
“Mostramos também que parece que, no roedor, o que está causando o
distúrbio ecológico que leva essa doença ao homem é a degradação do meio
ambiente. Quando muda o meio ambiente, o homem seleciona certas
espécies de roedores, diminuindo a variedade e predominando uma
espécie”, disse Figueiredo.
Oropouche
Outro vírus na mira dos cientistas do Centro de Pesquisa em Virologia
de Ribeirão Preto é o Oropouche, bastante importante para a saúde
pública, principalmente na Amazônia.
“Há mais de meio milhão de casos de infecção pelo vírus Oropouche no
Brasil; ele só perde para a dengue em termos de frequência de arbovírus
[transmitidos por artrópodes, como os mosquitos]”, disse o virologista
Eurico de Arruda Neto, pesquisador principal do Projeto Temático, ao
lado de Benedito Antônio Lopes da Fonseca, Aparecida Yamamoto e Victor
Hugo Aquino Quintana.
O vírus causa uma doença similar à dengue, chamada febre do
Oropouche. Mas em cerca de 5% dos casos pode provocar também
meningoencefalite.
Até pouco tempo atrás, ninguém sabia como ele matava as células que
infectava. “Descobrimos, por meio dos estudos realizados com o temático,
que o vírus Oropouche de fato mata a célula porque induz a apoptose
(morte celular programada). Essa apoptose é mediada pela via
mitocondrial e é dependente de uma proteína viral específica, chamada
NSs”, disse Arruda.
Com base em dados epidemiológicos e sorológicos, os pesquisadores
acreditam que o vírus está mudando de comportamento e aparecendo em
outras regiões do Brasil, além do Norte. “Os médicos aqui do Sudeste não
conhecem esse vírus, mal o estudam na escola de medicina, porque é um
vírus amazônico. Mas acho que ele circula muito mais do que a gente
pensa no Sudeste. Só que ele circula na mesma época da dengue, então o
médico confunde o quadro clínico com dengue”, disse Arruda.
A fim de testar drogas e vacinas contra o Oropouche, os pesquisadores
desenvolveram modelos experimentais de infecção em hamster e em
camundongo. “Em ambos os animais, o vírus mostrou infectar o sistema
nervoso central afetando neurônios e induzindo a apoptose deles. Além do
sistema nervoso central, o vírus também se replica com bastante
intensidade no fígado, matando células hepáticas”, explicou Arruda.
Ao longo de quatro anos, cerca de 60 pessoas trabalharam nos mais de
40 subprojetos do Temático, que inclui ainda pesquisas sobre vírus que
se tornaram conhecidos mais recentemente, como o bocavírus humano,
descoberto na Suécia em 2005. No total, foram publicados cerca de 20
artigos em revistas científicas internacionais e os resultados foram
incluídos em pelo menos oito teses de doutorado e 15 dissertações de
mestrado.
Um dos artigos de maior impacto no âmbito do Temático, A Global Perspective on Hantavirus Ecology, Epidemiology, and Disease (doi: 10.1128/CMR.00062-09), publicado na Clinical Microbiology Reviews, pode ser lido em: http://cmr.asm.org/content/23/2/412.full.
Fontes: Agencia FAPESP
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