Uma proteína descoberta em 1995, capaz de aniquilar as células tumorais, deixando ilesas as células saudáveis, é considerada um dos mais poderosos recursos naturais do organismo para deter o câncer.
No entanto, em certos tipos de câncer há uma inibição da expressão
dessa proteína, conhecida como TRAIL (sigla em inglês para ligante
indutor de apoptose relacionada ao fator de necrose tumoral), o que
permite a evolução do tumor.
Uma equipe brasileira de cientistas desvendou um mecanismo molecular
que controla a expressão de TRAIL na leucemia mieloide crônica (LMC). O
estudo, que mostrou como a “armadilha contra o câncer” é desmontada,
abre caminho para a investigação de alternativas terapêuticas para a
doença.
O trabalho, publicado na revista Oncogene, do grupo Nature, foi
coordenado por Gustavo Amarante-Mendes, professor do Departamento de
Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de
São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia de Investigação em Imunologia (iii-INCT) .
O cientista coordena atualmente um projeto de pesquisa,
financiado pela FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular, que
tem foco na área de excelência do grupo do ICB-USP: estudos sobre os
mecanismos moleculares que regulam os processos de morte celular em
câncer e em células do sistema imune.
De acordo com Amarante-Mendes, o trabalho foi a base da pesquisa de
doutorado de Daniel Diniz de Carvalho, primeiro autor do artigo.
Colaboraram também Welbert de Oliveira Pereira e Janine Leroy, alunos de
doutorado e mestrado, respectivamente. Os três tiveram bolsas da
FAPESP.
Durante seu desenvolvimento, a partir de 2007, o estudo recebeu diversos prêmios, incluindo o Nature Reviews Cancer Award, durante a 8ª Conferência São Paulo de Pesquisa ,
o segundo lugar no Prêmio Michel Jamra para Jovens Pesquisadores
durante a 23ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia
Experimental (FeSBE),
além do Prêmio Ricardo Pasquini, como melhor trabalho sobre leucemia
mieloide crônica apresentado no congresso da Associação Brasileira de
Hematologia e Hemoterapia (Hemo 2009).
Segundo Amarante-Mendes, a proteína TRAIL induz suas células-alvo à
morte iniciando um complexo e bem regulado programa molecular conhecido
como apoptose, que é acionado durante o desenvolvimento embrionário,
para formar de maneira apropriada órgãos e tecidos. Na vida adulta, a
apoptose – ou morte celular – desempenha um papel fundamental na
renovação das células.
“Os defeitos no processo de apoptose são observados em diversas
formas de câncer e a aquisição de resistência à apoptose é considerada
uma das etapas do processo de gênese do tumor. Algumas formas de câncer
são capazes de desenvolver resistência à morte induzida por TRAIL.
Outras, como a LMC, inibem a produção de TRAIL, escapando desse
importante mecanismo de defesa. Nosso estudo demonstrou o funcionamento
desse mecanismo molecular”, disse Amarante-Mendes à Agência FAPESP.
A LMC, segundo o cientista é causada por uma proteína quimérica –
isto é, que não deveria existir normalmente no organismo –, que surge
como resultado de uma “confusão” entre os cromossomos 9 e 22, que trocam
trechos entre si.
“É o que se chama de translocação gênica: a proteína ABL, do
cromossomo 9, é transferida para a região BCR do cromossomo 22. Isso
gera um cromossomo atípico, denominado cromossomo Filadélfia, associado à
LMC. O nosso estudo investigou os mecanismos moleculares responsáveis
pela inibição da expressão de TRAIL nas células leucêmicas
BCR-ABL-positivas”, explicou.
O trabalho, de acordo com Amarante-Mendes, teve colaboração de outros
grupos de pesquisa, incluindo as equipes coordenadas por Marco Antonio
Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP, Eliana Abdelhay, do Instituto
Nacional de Câncer (Inca), e as professoras Fabíola Castro, da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCF-RP-USP), e Jacqueline
Jacysyn, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Bala mágica
Inicialmente, a equipe observou que a expressão de TRAIL diminuía
expressivamente com a progressão da LMC e essa diminuição estava
diretamente relacionada a um aumento na expressão de uma outra proteína:
a PRAME (sigla em inglês para antígeno preferencialmente expresso do
melanoma).
“A PRAME normalmente não é encontrada em células normais, mas está
presente com frequência nas células tumorais. Depois de constatar isso,
nós observamos que a PRAME é diretamente responsável por inibir a
expressão de TRAIL em células leucêmicas”, disse Amarante-Mendes.
De acordo com ele, a PRAME é responsável por recrutar proteínas
capazes de inibir a transcrição gênica por meio de mecanismos
epigenéticos. “O trabalho mostrou também que esse mecanismo tem
implicações terapêuticas para a LMC, uma vez que a inibição de PRAME,
por RNA de interferência, é capaz de gerar uma maior expressão de TRAIL,
deixando as células leucêmicas mais suscetíveis à apoptose e,
consequentemente, à terapia”, afirmou.
Quando a TRAIL foi descoberta, em 1995, pelo fato de matar as
linhagens celulares em culturas tumorais preservando, ao mesmo tempo, as
linhagens primárias, a proteína foi considerada uma “bala mágica” para o
futuro do tratamento do câncer. Alguns tratamentos clínicos com base na
TRAIL chegaram a ser desenvolvidos.
“O problema é que algumas formas de câncer são resistentes a essa
sinalização. Em outras formas, como no caso estudado, o gene BCR-ABL
mantém baixa a expressão de TRAIL. Por isso focamos os estudos na tarefa
de desvendar esse mecanismo”, disse Amarante-Mendes.
É possível que o mesmo mecanismo desvendado pelos pesquisadores,
segundo ele, possa ocorrer não só na LMC, mas também em outros tipos de
tumores onde a expressão de PRAME é elevada.
“Essa possibilidade – e suas implicações clínicas – é o próximo passo
para os nossos estudos”, disse o cientista. O tema, segundo ele, já
começou a ser investigado por Bárbara Mello, que desenvolve no
laboratório do ICB seus estudos de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP.
O artigo BCR-ABL-mediated upregulation of PRAME is responsible for knocking down TRAIL in CML patients (doi:10.1038/onc.2010.409), de Gustavo Amarante-Mendes e outros, pode ser lido por assinantes da Oncogene em www.nature.com/onc
Fonte: Agencia FAPESP
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